Não dá para não homenagear Piquet, ao completar 60 anos... Só quem
viveu esse tempo sabe do que estou falando, e assim sendo, reproduzo a
coluna de Flávio Gomes no MSN Esportes / Grande Premio... É longa, mas
é ótima!
"Piquet pode não ter sido o melhor, nem o mais importante piloto brasileiro. Mas foi, certamente, o ma
is
interessante.
E na minha escala de valores, muito particular,
interessante vem na frente de importante e de melhor.
E nessa mesma
escala de valores, bastante particular, Emerson foi o mais importante e
Senna, o melhor".
Isso posto, porque é óbvio que quando se fala
de Piquet em tom laudatório a malta de sennistas se ouriça, assim como
se ouriça a súcia piquetista quando o tom laudatório é dirigido a
Senna, falemos um pouco de Nelson Piquet.
(Mas antes vale um parêntese para os mais jovens, que talvez não
compreendam bem essa história de sennistas e piquetistas. Isso existia
— ainda existe, mas existia em manifestações, digamos, mais agudas nos
anos 80 e 90 do século passado. Hoje essa briga se dá em fóruns, blogs,
redes sociais. Uma coisa meio estúpida. Piquet e Senna eram os
esportistas brasileiros mais bem-sucedidos de um tempo em que o
futebol, carro-chefe esportivo do país desde que o dia em que o
primeiro tupinambá deu um bico num coco numa praia de Trancoso, estava
em baixa. A seleção havia conquistado o tri em 1970 e a decepção de
1982 fez com que outros ídolos ganhassem algum espaço na mídia e no
coração amanteigado de nossa gente cordial. Assim, dois caras que
ganhavam corridas e títulos numa modalidade de ponta, como a Fórmula 1,
conquistaram uma notoriedade ímpar. Era vinhetinha pra lá, Tema da
Vitória pra cá, bandeira no pódio e Hino Nacional o tempo todo. Na
falta de outra coisa, servia bem ao propósito de manter a autoestima
das pessoas em níveis aceitáveis — aquela babaquice de sempre, de
misturar esporte e patriotismo. Isso não vem ao caso, porém. Com dois
caras para torcer, era natural que a escumalha se alinhasse a um ou a
outro. Senna era a encarnação do Bem. Piquet, a do Mal. Claro que estou
simplificando as coisas. Mas era mais ou menos assim.)
Piquet
e Senna foram igualmente competitivos por pouco tempo: de 1985, quando
Ayrton foi para a Lotus, até o fim de 1987, quando Nelson deixou a
Williams. Antes e depois, foram apenas contemporâneos, mas não
duelistas. Os últimos quatro anos de Piquet na F-1 foram totalmente
ofuscados pelo sucesso estrondoso de Senna. E isso contribuiu para
acirrar a rivalidade, que ocorria “a nível de” paddock, imprensa e
papos de botequim. Era bem divertido.
Nelson completou 60 anos
hoje. Sua trajetória é das mais ricas, construída a partir de uma
oficina em Brasília, passando por viagens de Kombi, por motores
“emprestados” dos clientes, por categorias de base como a Super Vê (que
era belíssima), por muita mão na graxa, muita inteligência, esperteza,
capacidade de observação, aprendizado constante, F-Ford na Inglaterra,
F-3, títulos, vitórias, dedicação, esforço, empenho, entrega,
comprometimento, confiança no taco e tudo mais que compõe a figura
completa de um grande piloto.
Na F-1, conviveu com gênios de
todos os tipos e áreas, como Ecclestone, Murray, Head, Williams, o
pessoal da BMW (Piquet fala “bê-eme-vê”, como se deve), da Honda, das
fábricas de pneus, mecânicos, engenheiros, projetistas, e sempre foi um
deles, um igual, um gênio para um monte de coisa. Correu, ganhou,
bateu, foi para a Indy para correr as 500 Milhas, bateu de novo, quase
morreu, parou, casou um monte de vezes, encheu o mundo de descendentes,
tornou-se empresário e colocou um filho na F-1.
Nessa vida
louca toda, Piquet sempre manteve o ar moleque e os olhos rápidos e
faiscantes, parecia não envelhecer nunca, até 2008, quando Nelsinho fez
a cagada do século em Cingapura e ele, o pai, se envolveu até a última
célula. Aí, envelheceu. Acho que nada na vida incomodou Nelson, nada
foi capaz de derrubá-lo, de deixá-lo magoado ou triste por mais de
cinco minutos. Mas o filho bater o carro de propósito, a mando de um
crápula como Briatore, acabou com ele.
Convivi bastante com
Piquet, de 1988, quando comecei a cobrir F-1, até 1993, quando fez sua
última corrida importante, em Indianápolis. Guardo poucas histórias,
como a do boné que me deu no grid das 500 (e pode ser lida aqui:
http://flaviogomes.warmup.com.br/2012/05/piquet-20/),
das brincadeiras de pivete, como pegar meu gravador e jogar longe, para
vê-lo se espatifar no chão e cair da cadeira de tanto rir, das boas
entrevistas e de um ou outro encontro fora das pistas. Num deles, em
Cumbica, o vi desembarcar com duas rodas enormes nas mãos e perguntei
por que não tinha despachado aquilo, para ouvir dele que tinha medo que
o despacho se extraviasse, eram para alguém que precisava dar um
upgrade na sua cadeira de rodas, e aquilo era importante demais para se
perder numa esteira de aeroporto.
Em 1989, em Monza, Senna
brilhava na McLaren e Piquet se afundava numa Lotus medíocre, quando
cruzei com ele no paddock e o chamei timidamente. Ele virou-se e disse
que não queria falar com ninguém, estava puto dentro do macacão e sem
saco para nada, soltou um palavrão e seguiu em frente. Tomei coragem e
gritei: não quero falar com você, é que tenho um recado do Crispim!
Nelson estancou na hora, voltou-se para mim e perguntou: você conhece o
negão? E eu contei que sim, que conhecia o negão, ele mexe nos meus
DKWs, tirei um pedacinho de papel do bolso com um número de telefone e
dei a ele. Puta que pariu, o Crispim, quanto tempo que eu não vejo esse
negão filho da puta, me dá esse telefone aqui, e abriu um sorriso
enorme, esqueceu a Lotus, a desgraça do carro, o sucesso do rival, as
pentelhações da ex-mulher. Miguel Crispim Ladeira, mecânico-chefe da
equipe Vemag nos anos 60, era quem lhe emprestava um quarto para dormir
em São Paulo quando Piquet despencava de Kombi de Brasília trazendo
suas peças e ferramentas para correr de Super Vê, era quem lhe dava uma
mão em Interlagos, era um irmão e um amigo. Dei o pedacinho de papel
para ele, que me abraçou e disse puta que pariu, vou ligar pra ele já.
E consta que ligou, mesmo.
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sábado, 18 de agosto de 2012